Descobrir-se negra começa na infância 

A Série Mulheres Negras: do centro à periferia é uma parceria entre o Centro Sabiá e o Terral Coletivo de Comunicação Popular, como forma de marcar o mês da Consciência Negra. Todas as matérias trazem o protagonismo da mulher negra, desde a abordagem da temática até a escolha das entrevistadas e a autoria – os textos são escritos por jornalistas negras que compõem o coletivo. Desta vez, destaca-se a identidade da menina e da mulher negra, num percurso que vai da negação à afirmação. 

Por Mariana Reis (Terral Coletivo de Comunicação Popular)

Fui criança nos anos 1980. Na época, o que tinha pra ver na TV era o Show da Xuxa. Uma apresentadora loura, com paquitas louras – sim, isso foi antes de Bombom, negra, integrar-se ao grupo – como maior referência para as meninas de todo o Brasil. No Dia das Crianças, pedi uma boneca da Xuxa. Minha tia me levou numa loja e me convenceu de que a boneca da Xuxa era ruim de brincar, por ser muito dura – na verdade, era muito cara e não tínhamos condições de comprar. Em compensação, ela tinha descoberto outra boneca que, em sua opinião, eu ia gostar muito. Foi aí que meus olhinhos brilharam: conheci a minha primeira – e única – boneca negra, que passou a me acompanhar em todas as ocasiões. Tornou-se a minha favorita porque me identifiquei de imediato: eu tinha seis anos de idade e era igualzinha a ela. 

Da negação à afirmação 

Quem é ou já foi menina negra sabe como é difícil encontrar uma boneca que se pareça conosco. Da década de 1980 pra cá, a indústria de brinquedos mudou muito, mas ainda não reconhece as crianças negras como nicho de mercado, ignorando o fato de 51% da população brasileira reconhecer-se como preta ou parda, segundo pesquisa do IBGE de 2012. 

Para além dos hábitos de consumo, o que acontece, na prática, é que, ao não se identificar com o seu brinquedo, a garotada pode ter baixa autoestima. É o que afirma a psicóloga Aracelly Julieta: “A ausência de elementos positivos vai produzir de modo insconsciente um sentimento de não pertencer àquela imagem. A criança passa a ter dificuldades de se sentir negra, pois não se vê representada num brinquedo, num filme, num desenho infantil”. Para a especialista, que estuda a invisibilidade das crianças negras na filmografia nacional, a menina negra passa por uma tripla invisibilidade, decorrente do gênero feminino, da sua etnia e da condição da infância. Ainda segundo ela, diversos autores debatem isso e uma das principais referências da área é a obra Tornar-se Negro, da pesquisadora Neusa Santos. 

O Projeto Brincadeira de Criança, realizado pela ong Auçuba em escolas públicas de comunidades populares do Recife, fez com que a equipe de educadores, em sua maioria negros, percebesse que há nessas crianças uma negação de sua identidade de criança negra. Com foco na formação audiovisual, o tema da negritude é trabalhado ali de forma transversal, como diálogo na sala de aula. “Em casa, com os pais e avós, isso não é discutido, até porque há uma dificuldade da própria família em se reconhecer negra, por causa do racismo que ainda é forte na nossa sociedade. A criança não vê essa referência em casa ou na TV, os padrões de beleza são outros, o negro é estereotipado. Na escola, a lei 10.639 [que legisla sobre o ensino da cultura afrobrasileira] não é discutida. A gente tenta desmistificar a partir das brincadeiras e jogos, na escolha dos filmes que são debatidos, ressignificando essa identidade de gênero e raça, pois identidade é questão de reconhecimento”, explica Paula Ferreira, coordenadora do Auçuba e também educadora no projeto.

Passado e presente 

Em tempos de princesas e heroínas, é preciso ter referenciais de mulheres negras para se inspirar. Nascida no Crato, sertão do Ceará, e filha de cordelista, a escritora Jarid Arraes percebeu lá na infância e na sala de aula que faltavam referenciais de heroínas negras na nossa historiografia oficial. Adulta, começou a pesquisar, organizar e publicar a história de vida e de luta dessas mulheres. Assim, Carolina de Jesus, Luiza Mahin, Anastácia e tantas outras ganharam o mundo. Hoje, os cordéis da série Heroínas Negras do Brasil são usados como material didático por educadores país afora e podem ser encomendados pela internet.

Já para a professora Domênica Rodrigues, a inspiração vem da ancestralidade e passa pelas gerações. “Sou de Palmares (PE), na Zona da Mata. Meu pai foi cortador de cana, minha avó também. A gente vem dessa herança de um trabalho de semiescravidão, mas também da resistência camponesa, da referência do quilombo de Palmares. Minha mãe foi professora em escola do campo, a primeira da família a quebrar essa barreira e fazer faculdade”, rememora. 

Para ela, o reconhecimento enquanto mulher negra aconteceu há poucos anos. O processo teve a ver principalmente com o fato de ter se tornado mãe e envolve o enfrentamento ao racismo. “Pelo fato de a minha filha ter a pele mais clara, muitas vezes não sou reconhecida nos lugares como mãe dela. Isso fez com que eu, de fato, me descobrisse negra, pois percebi que antes me embranquecia para conviver nos espaços”, aponta. 

É como afirma, ainda, Aracelly: “O processo de empoderamento, os espelhos, podem vir por outros caminhos, não apenas pela boneca negra. Pode ser como mulher adulta e como ela vai lidar com com sua negritude expressa na filha. Tem a ver com o fortalecimento da identidade da mulher negra e isso faz toda a diferença para essa criança negra contemporânea”. 

 

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