Diário dos Povos do Sertão

Por Inácio França*

Dia 3 (27/06/2018)

 

Pragmatismo sob o sol

Sem as recepções festivas do primeiro dia da agenda, o intercâmbio entre agricultores do semiárido brasileiro e do ‘corredor seco’ centro-americano teve um dia mais pragmático.  O dia começou com o café da manhã no hotel em Campina Grande, seguido de um deslocamento curto até a sede da AS-PTA no município de Esperança, entidade que atua nacionalmente com foco na agricultura familiar e agroecologia.

A passagem pela sede da ONG, às margens da BR-104, foi rápida. O grupo se dividiu em dois e seguiu para conhecer as experiências de duas famílias nas comunidades de Riacho do Boi e Sítio Carrasco. Desta vez, não tinha nuvem alguma para esconder o sol no planalto da Borborema.

 

Micro propriedade com super produtividade

Na propriedade de Givaldo Firmino e Maria das Graças Vicente, os visitantes custaram a crer na quantidade e diversidade da produção que o casal obtém em um terreno de apenas 1,25 hectare. Num espaço que, em qualquer local das américas, é considerado um minifúndio, há uma farta colheita de pelo menos cinco variedades de laranja, duas de limão, cana-de-açúcar, pimenta malagueta, feijão, cajá, jabuticaba, manga, hortaliças e o orgulho da família: o milho orgânico, devidamente certificado.

“Vivemos muito bem aqui. Não temos direito de reclamar. Nem tempo”, repete Givaldo.

 

Seca nunca mais

Nem sempre foi assim. Até o ano 2000, ele tinha de andar 40 minutos para trazer duas latas d’água nas costas. “Só tinha água ali, no pé daquele morro. Agora, tem água limpinha para beber e cozinhar aqui junto de casa”, explica o agricultor, beneficiado com uma das primeiras cisternas de placas construídas no programa ‘Um milhão de cisternas’.

A cem metros da casa, uma cisterna-calçadão, equipamento com capacidade para 52 mil litros d’água acumulado a partir de uma grande “calçada” de cimento por onde a água escorre, alimenta o sistema de irrigação por gotejamento. “Para não desperdiçar”, justifica.

 

Qualidade de vida

Ao ser apresentada à cozinha da família, transformada em unidade de produção de polpa de fruta, “caiu uma ficha” para a guatemalteca Gloria Díaz: “Nossos irmãos brasileiros vivem em condições climáticas piores que a nossa [no corredor seco, chove quase o dobro que no semiárido], mas tem melhores condições econômicas”. Para ela, isso acontece graças à organização, capaz de conquistar apoio do governo.

O relato feito pelo casal ajuda Gloria, líder de uma cooperativa de mulheres apresentada aos leitores da Marco Zero na reportagem ‘Sertões das Américas’, a compreender como as coisas aconteceram no Semiárido. “A gente comprou a despolpadeira e o freezer por causa dos programas de agricultura familiar do governo Lula”, afirma Givaldo.

 

Não é só água

Não bastam as cisternas para transformar tanto a vida das famílias. “A agroecologia é o outro segredo da fartura”, afirma a convicta Maria das Graças, que prefere ser chamada de Nina, apelido de infância. “A melhor coisa é produzir isso tudo sem veneno e sem química. A gente gasta menos e só come coisas que fazem bem à saúde”.

Além das técnicas da agroecologia, a assessoria da AS-PTA ajudou a incorporar na rotina do casal o registro de tudo o que é produzido, vendido, doado ou trocado. Na coluna ao lado da quantidade de cada produto, é anotado o valor de mercado. O registro faz parte de uma estratégia da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) para jogar luz sobre os valores movimentados anualmente pelas famílias que adotam a agroecologia.

“Eles fazem parte de uma pesquisa nacional que irá dar visibilidade a essa economia invisível, afinal um dos argumentos do agronegócio é que a agroecologia é economicamente insignificante”, defende Adriana Galvão Freire, técnica da ONG.

Outra visitante, Doris Chavarria, ressaltou a importância desse registro: “Assim a gente sabe o quanto poupou”.

 

Tarde sem Copa

Apesar da agonia de alguns visitantes, a AS-PTA manteve o pragmatismo durante o período da tarde, realizando uma série de apresentações sobre a articulação ‘Polo da Borborema’, com os movimentos de mulheres, de jovens, outras ONGs e sindicatos da região. Apesar da agenda rigorosa, alguns participantes do intercâmbio conseguiram escapar e acompanhar a vitória do Brasil, inclusive o repórter da Marco Zero – numa atitude nada profissional – e até alguns integrantes da equipe da Articulação do Semiárido (ASA).

 

Dia 2 (26/06/2018)

 

Exaustão versus excitação

Para quem tinha acabado de enfrentar quase dois dias de viagem desde suas aldeias no departamento de Chiquimula, na Guatemala, ou do Oriente em El Salvador, não foi fácil dormir cinco horas e retomar a jornada às 6h. A excitação e a curiosidade, contudo, colocaram a exaustão dos camponeses e camponesas de El Salvador, Guatemala e Honduras em segundo plano.

No trajeto de duas horas entre o hotel em Campina Grande e a comunidade Sussuarana, em Juazeirinho, Doris Chavarria contou que estava curiosa e ansiosa. Nem precisava, não dava para disfarçar. “Quando nos visitaram, em abril, me impressionaram o compromisso e o amor dos agricultores brasileiros pelos recursos naturais, pela terra, pela água, pelos alimentos”, recordou.

 

Aula no ônibus

No meio do caminho, um dos coordenadores da Articulação do Semiárido, Antônio Barbosa, deu uma pequena aula de português para facilitar a compreensão de alguns termos que seriam muito usados dali em diante. “Manzana no Brasil não é medida de área como na América Central, se traduz apenas como maçã e mais nada”. Maiz = milho. Frijoles = feijão. Yuka = macaxeira. Semillas = sementes. O bastante para dar início ao diálogo.

 

Forró e comida boa

A recepção no terreiro em frente à casa de seu Petrônio Fernandes e Ivoneide Nunes foi em grande estilo: sanfoneiro, zabumba, triângulo, pamonha, tapioca, queijo coalho, cuscuz, banana, mamão, café com leite. Os visitantes não esperavam tanto.”Estoy atónita”, balbuciou a guatemalteca Glória Diaz. Ela quase chora.

Foi bonito mesmo. A visita às propriedades – um grupo ficou com o casal anfitrião, outro seguiu em comboio de carros para um sítio na vizinhança – começou no final da manhã e prolongou-se até início da tarde. O céu nublado ajudou.

 

Anfitriões e protagonistas

Aos 53 anos, Petrônio admitiu nunca ter imaginado que, um dia, seu pequeno sítio seria modelo a ser seguido por agricultores de três países. “Já chorei umas cinco vezes. Quando acordei, já fui chorando quando lembrei que a visita seria hoje”.

Petrônio e Ivoneide foram escolhidos por várias razões: o protagonismo de Ivoneide no sindicato dos trabalhadores rurais e na comissão municipal de projetos sociais, além dos ótimos aproveitamento e manejo da água captada por várias tecnologias apropriadas para o Semiárido.

 

Fácil e barato

Diante da cisterna de placas com 16 mil litros de água da chuva, os visitantes quiseram saber do custo, ficando impressionados com o valor de apenas US$ 1.000,00. O salvadorenho Victor de Leon Gomes não entendeu como podem ter morrido um milhão de nordestinos na seca de 1983, se o valor era tão baixo. Os técnicos da ASA explicaram que, na época, o Brasil vivia sob uma ditadura militar que proibia a organização do povo e que a técnica de construção da cisterna só chegou no final dos anos 1990, a partir da experiência da China.

Santos Arias Hernández, também da Guatemala, ficou interessado no sistema de reuso das águas utilizadas pela família. “É fácil. Dá para fazer na minha terra”.

 

Muita água, pouco tempo

Foram mais de duas horas percorrendo os cinco hectares da propriedade. Conheceram o barreiro cheio até a borda, a barragem subterrânea, as forrageiras para o gado, a diversidade de frutas, verduras, legumes e plantas ornanentais vendidos na feira agroecológica de Juazeirinho.

Petrônio disse que, depois de seis anos de seca, ele quase não tem tempo para plantar tudo o que quer. “Falta tempo, é tanta água que até fico besta”. Ivoneide emendou: “há tempo não via tanta água. A última vez que esse açude encheu foi em 2012″.

 

100% de aproveitamento

A visita terminou diante de outra cisterna, a “de enxurrada”, para 52 mil litros, abastecida a partir de vários caminhos que conduzem as águas da chuva para o interior do equipamento. O tamanho surpreendeu os centroamericanos, mas o brasileiro Vicente Puhl, da agência de cooperação suíça Heks, sediada em Brasília, acredita que a dimensão da cisterna não era o mais importante: “A família sabe como usar as águas e as tecnologias de maneira combinada. É muito inteligente”.

 

Preocupação

No final do dia, uma sombra pairava sobre o entusiasmo dos visitantes. A salvadorenha Mariana García, o funcionário da FAO na Guatemala Gustavo Garcia e o técnico hondurenho Edwin Escoto estavam tensos.

A programação da quarta-feira prevê uma roda de conversa sobre experiências com mulheres e jovens da região para o horário das 14:30min. Mariana explicou o porquê da angústia: “Nós centroamericanos torcemos muito pelo Brasil. Em todas as Copas, El Salvador pára nos dias de jogos da seleção brasileira. Não podemos perder essa partida estando aqui”.

O repórter da Marco Zero e o representante da agência Heks prometeram negociar com a ASA uma mudança na agenda. Se não der certo, não estão descartadas sabotagem ou fuga. Os visitantes estrangeiros concordaram com todas as opções.

 

Dia 1 (25/06/2018)

Primeiro um grupo de agricultores de todos os estados do semiárido brasileiro visitou, em abril, a região do ‘corredor seco’, na América Central, para conhecer experiência de organização popular dos campesinos e campesinas da Guatemala e El Salvador. Hoje, 13 agricultores desses dois países, além de um hondurenho, desembarcaram no aeroporto dos Guararapes para conhecer o que os camponeses paraibanos e pernambucanos fazem para produzir alimentos saudáveis, captar água da chuva e enfrentar o desmantelamento das políticas públicas promovidas pelo governo Temer.

A Marco Zero é um dos três veículos que irão acompanhar mais essa etapa do intercâmbio entre os povos das regiões secas, promovido pela Articulação do Semiárido (ASA) em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO). Durante esta semana, vamos registrar o dia a dia dos encontros entre os centroamericanos e as famílias de comunidades rurais de Juazeirinho (PB), Esperança (PB), Cumaru (PE) e Bom Jardim (PE).

 

*Inácio França é formado em Jornalismo na Unicap, aprendeu mesmo o ofício como repórter de polícia do Diário Popular (SP). Passou pela sucursal paulista de ‘O Globo’ e ‘Diário de Pernambuco’. Ganhou os prêmios Vladimir Herzog de Jornalismo e Direitos Humanos, Cristina Tavares, Ayrton Senna de Jornalismo e menção honrosa no Ibero-Americano de Jornalismo pelos Direitos da infância. Saiu das redações para ser secretário de Comunicação de Olinda. Em seguida, foi oficial e consultor de comunicação do UNICEF, assessor de imprensa pouco inspirado na secretaria de Ciência e Tecnologia de PE. Também viu de perto os intestinos do futebol como diretor de Comunicação do Santa Cruz F.C. Publicou a novela ‘Terezas’ (2017), uma trilogia de crônicas de futebol com Samarone Lima (2013-2014) e dois livros de entrevistas e memória com a cineasta Tuca Siqueira (2009 e 2014). É casado com uma mulher que ama desde a adolescência e tem três filhos.

Fonte: marcozero.org

Que bom ter você por aqui…

Nós, do Centro Sabiá, desde 1993 promovemos a agricultura familiar nos princípios da agroecologia. Nossa missão é "plantar mais vida para um mundo melhor, desenvolvendo a agricultura familiar agroecológica e a cidadania". Seu apoio através de uma doação permite a continuidade do programa Comida de Verdade Transforma e outras ações solidárias e inovadoras junto ao trabalho com crianças, jovens, mulheres e homens na agricultura familiar.

Compartilhe

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *