Um voto pela Democracia


O uso eleitoreiro da água é proibido por Lei | Foto: Elka Macedo/Acervo ASAcom

No Semiárido, a nefasta Indústria da Seca pode ressurgir com força no pós-impeachment

Por Gleiceani Nogueira (Assessoria de comunicação da ASA Brasil)*

As eleições municipais de 2016 ocorrem num momento de conjuntura política do País extremamente difícil, com a derrubada de uma presidenta eleita nas urnas com 54 milhões de votos através de um golpe parlamentar construído por um Congresso antidemocrático e distante dos interesses do povo. Desde o início do processo do impeachment – liderado pelo deputado Eduardo Cunha (PMDB), cassado por quebra de decoro parlamentar ao negar ter contas no exterior, até a concretização do governo Temer – com as políticas de retração de direitos e a forte repressão policial nas manifestações de rua nas principais capitais -, fica evidente que a democracia brasileira está em risco.

Essas são questões que precisam ser debatidas e levadas em consideração no momento de escolher os candidatos que vão integrar as Câmaras Legislativas Municipais nos próximos quatro anos. Nesse contexto, as eleições municipais fazem alguma diferença? Elas podem reverter ou acentuar esse quadro de retrocessos? O meu candidato está do lado dos direitos da população? Ele é apoiado pelos parlamentares que votaram a favor do impeachment? De que forma a minha escolha influencia no coletivo?

Para o coordenador da ASA pelo estado do Piauí, Carlos Humberto, a conjuntura antidemocrática tem um impacto muito grande nas eleições municipais que, historicamente, trazem na sua história o elemento da não democracia na medida em que os eleitores foram levados a um entendimento de que o voto de cada um (a) não faz diferença para a qualidade de vida da população local. Ele também destaca que esse modelo contribui para o acirramento da disputa de poder de grupos familiares, sobretudo, nas comunidades do interior.

“É muito forte ainda a prática do clientelismo, do assistencialismo e do poder familiar nas nossas comunidades. E o golpe, no formato como se deu, ele fortalece ainda essa prática nos nossos municípios e comunidades. E ainda é um desafio, para nós, lutar contra isso. Fazer com que a gente desmonte esse modelo para poder, de fato, consolidar um processo democrático”, contextualiza.

A situação de seca, que atinge o Semiárido pelo quinto ano consecutivo, pode agravar ainda mais essas práticas proibidas pela lei eleitoral, pois ainda há um índice grande de famílias que vivem na pobreza e que dependem de políticas públicas que, muitas vezes, estão concentradas em determinado grupo político. De acordo com o Ministério da Integração Nacional, 841 municípios do Semiárido Brasileiro (incluindo o Maranhão que não é reconhecido como Semiárido Legal) estão em estado de emergência por conta da seca ou estiagem.

No final de julho, o Governo Temer autorizou, através de uma medida provisória, um crédito extraordinário de R$ 789,9 milhões para ações emergenciais de combate à seca como a construção de adutoras, perfuração de poços e distribuição de água através de carros-pipa. Os recursos serão administrados pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) comandando na maioria dos estados pelo PMDB.

O departamento foi criado em 1909 e é um dos principais símbolos da Indústria da Seca. Ao longo de sua existência, foi responsável pela construção de 70 mil açudes com capacidade para armazenar 36 bilhões de metros cúbicos de água de chuva. É a maior ação de açudagem do mundo. No entanto, essa água não foi distribuída de forma horizontal e não resolveu o problema de abastecimento de água no Semiárido.

Em seu artigo DNOCS X Convivência com o Semiárido, Roberto Malvezzi (Gogó), integrante da equipe da CPP/CPT do São Francisco, destacou que a concepção do departamento é equivocada em si mesma, ou seja, combater a seca. Ele também citou como o órgão funcionou durante sua longa existência e a quem, de fato, ele beneficiou. “Mas, foi ali [no DNOCS] também que a chamada “indústria da seca” grassou como praga. Sempre exigindo novas verbas para novas obras, foi o ralo do enriquecimento pessoal de multidões de coronéis nordestinos, que fizeram a maior parte dos açudes e poços em suas propriedades particulares, além de construírem seu poder econômico e político manipulando a sede do povo”.

O texto foi publicado em 2012 no contexto de crítica da sociedade civil à posição do governo federal de distribuir cisternas de plásticos por considerá-la uma proposta ligada à Indústria da Seca, uma vez que exclui a população local, não permitindo a sua participação no processo de reaplicação da técnica, criando dependência das empresas.

Sobre a verba para o DNOCS, Carlos Humberto avalia como um retrocesso que pode trazer com força a Indústria da Seca, sobretudo, pelas forças reacionárias que defendem o latifúndio e o agronegócio. Para ele, é necessário unir forças para o embate, pois o que está em jogo é a disputa das classes trabalhadoras com as classes dominantes que sempre tiveram privilégio nesse País.

“Nós vamos ter que nos fortalecer cada vez mais, criar mais pontes entre as organizações pra que de fato a gente possa ir para o embate com essa ameaça que o governo Temer traz quando libera dinheiro para essas estruturas viciadas e contaminadas pela corrupção e pelo poder da Indústria da Seca. Nós vamos ter que ter coragem de enfrentar isso e trazer para o nosso debate na rede ASA”, pontua.

Cleusa Alves, da coordenação da ASA pelo estado da Bahia, avalia a decisão de Temer como parte de uma proposta de longo prazo que deve ser sentida mais fortemente no pós-eleição, quando medidas mais impopulares devem ser anunciadas, não apenas em relação à Indústria da Seca, mas em outras áreas.

“Mas, certamente, isso [o repasse de recursos para o DNOCS] vai confirmar ações de possíveis prefeitos que estejam ligados a esse grupo e que, no futuro muito próximo, corre-se o risco de um investimento maior nesse tipo de ação emergencial e na perspectiva da indústria da Seca, ignorando completamente as políticas de convivência com o Semiárido”, afirma Cleusa.

Indústria da Seca em Passagem (RN) – Apesar de ser crime eleitoral, a prática do clientelismo ainda é muito presente nas comunidades, principalmente, no Semiárido. Nessa região, a água continua sendo a principal moeda de troca para que políticos e grupos de famílias conquistem votos e se mantenham no poder.

Em Passagem, município com 3 mil habitantes no Semiárido Potiguar, o professor e assessor do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais há 20 anos, Lucinaldo Chaves, que reside no sítio Oité, relata como isso acontece: “É uma prática comum nos municípios e a gente vê de perto, de colocar água só naquelas pessoas que votam no prefeito. Pode até colocar naqueles que não votam, mas chega com dificuldade, demora, mas aquela pessoa que é aliada ao prefeito tem um caminho aberto, livre, é mais rápido essa assistência em relação à água. Isso é uma prática que infelizmente a gente ainda vê muito nos municípios”.

Outra forma dos políticos se beneficiarem, segundo Lucinaldo, é através do corte de terra. Ele explica que não há participação do sindicato na identificação das famílias e que o cadastro é feito exclusivamente pela prefeitura. De acordo com ele, essa prática acaba gerando na população a ideia de que aquele bem foi dado pelo prefeito e, portanto, as pessoas devem favor a ele.

Em 2012, o município vivenciou uma disputa eleitoral acirrada. O candidato eleito, José Pereira Sobrinho, conhecido como Dede de Babá, do DEM, foi cassado por distribuir terrenos em troca de votos. Através de uma eleição suplementar, o candidato derrotado nas urnas, Tota Fagundes (PMDB), assumiu a prefeitura desde novembro do ano passado.

Naquele ano, o Ministério Público (MP) Eleitoral do Rio Grande do Norte fez uma recomendação à Prefeitura de Passagem solicitando a suspensão de uma licitação que foi aberta logo após o município decretar estado de emergência por conta da seca. A medida foi tomada com a finalidade de evitar a distribuição indevida de bens, valores e benefícios no ano das eleições.

De acordo com o MP Eleitoral, a licitação era referente à compra de equipamentos como refrigeradores, fogões e televisores, que seriam distribuídos em comemoração ao dia das mães e, também, destinados à Secretaria Municipal de Assistência Social. A justiça eleitoral permite a distribuição de bens desde que para atender as necessidades decorrentes da seca ou estiagem vivida naquela cidade. A prática irregular pode caracterizar conduta vedada, punida com multa e cassação de registro ou diploma de eventual candidato beneficiado.

Lucinaldo recorda bem desse período, quando ele e sua família passaram por muita dificuldade devido à falta de água. “Em 2012 eu queria que você visse a água que a gente usava. Água verde, grossa, pra o gasto. Não era pra beber porque a situação era muito desumana, mas aquela água daquele jeito a gente usava para banho, para os animais”, relembra.

Ele conta que foi várias vezes na prefeitura fazer o cadastro para receber água através do exército, mas que nunca foi atendido. Com um empréstimo que o pai fez, a família perfurou um poço para ter acesso à água para beber.


Abastecimento de água no Sertão de Pernambuco por carro-pipa | Foto: J. R. Ripper

Vote consciente – O caso de Passagem revela outra prática comum no processo eleitoral, seja no campo ou na cidade, que é o da escolha do candidato a partir de interesse próprio. Ou seja, as pessoas partem do individual e não do coletivo. Para Carlos Humberto, essa ordem precisa ser inversa, pois é do local para o global que se constrói um estado e um país melhor. “Nós temos que trabalhar numa perspectiva de lutar pelos direitos coletivos pra poder garantir os direitos individuais. Nós nunca vamos trabalhar o contrário. Nós temos que trabalhar pessoas que já incorporaram essa concepção de que é a partir da conquista de direitos coletivos que nós vamos ter a qualidade de vida individual, da família e dos grupos”, reforça.

No município de Macajuba, no Semiárido baiano, um dos instrumentos que vêm sendo utilizado para fazer o debate de forma consciente sobre as eleições é a rádio comunitária, através do Fórum da Cidadania. “A gente também deve ajudar a população a entender que determinado candidato é apoiado pelos golpistas que estão provocando toda essa perda de direitos. A gente precisa esclarecer à população nesse sentido. Quem está de fato do lado da população? Não é quem está do lado de Lula ou Dilma, mas quem está do lado da defesa dos direitos da população”, esclarece Clêusa.

Ela também aposta no trabalho de formação e mobilização social que vem sendo feito através de programas sociais como PNAE, PAA e o Programa Cisternas. Apesar de reconhecer que há limitações e desafios, ela afirma que eles ajudaram a construir uma base sólida e contam a participação da sociedade civil. Para Cleusa, são essas ações aliadas às experiências das próprias famílias que vão construir um processo eleitoral mais consciente e de resistência ao golpe.

“A gente investiu na cidadania, na consciência de direitos e quem já experimentou o que é autonomia vai saber realmente distinguir dessas proposições quais estão ligadas a Indústria da Seca. As pessoas não vão querer perder isso porque fizeram um caminho de construção. Ninguém vai querer voltar para a dependência. Então uma vez se tendo consciência de que essa perda de direitos está eminente, essa população vai realmente buscar forças nas suas experiências, na sua caminhada de autonomia, pra fazer com que o Estado assuma o seu papel que não é de defesa dos interesses de uma elite, mas é de estar a serviço do povo”.

Para o pós-eleição, Carlos convoca à população do Semiárido a acompanhar e fiscalizar o trabalho dos gestores nas Câmaras Municipais para que as políticas de convivência com o Semiárido continuem sendo implementadas, pois as ações e programas locais terão um reflexo direto nas eleições de 2018. “Nesse momento eu defendo que nós não podemos deixar o nosso grande palco de luta que são as ruas e as praças. A luta pelo golpe e em favor da democracia tem um palco e esse palco são as ruas e as praças”.

Em 2012, a ASA lançou a campanha Não Troque seu Voto por Água com o objetivo de alertar, fiscalizar e denunciar os abusos no uso eleitoreiro da água nas eleições municipais. Oferecer benefícios em troca de água é crime pela Lei Federal 9.840/99, conhecida como Lei de Combate à Corrupção Eleitoral. Essa mensagem continua sendo ecoada nas comunidades rurais pelas entidades que compõem a rede.

*Reportagem publicada originalmente pela Articulação Semiárido Brasileiro

 

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